Marca do Caminho de Santiago

Testemunho e reflexão de um Cursilhista que realizou o Caminho de Santiago de Compostela

O CAMINHO DE SANTIAGO DE COMPOSTELA E O CURSILHO

O Caminho de Santiago de Compostela e o Movimento de Cursilhos de Cristandade (MCC) entraram na minha vida há pouco mais de vinte anos. De lá para cá eles se entrelaçam de uma maneira singular, fortalecendo corpo e espírito. Nesse período, realizei oito peregrinações na Península Ibérica, afora outras aqui pelo Brasil. Já no MCC, participação em mais de três dezenas de retiros e inúmeras outras atividades.

Quando recebi o convite para unir esses dois temas neste artigo, percebi que essa se tornaria uma escrita que envolve muitos afetos, pois essas realidades me proporcionaram companheiros e amigos peregrinos-cursilhistas que me sustentam e incentivam para caminhos mais desafiadores e ser um cristão comprometido.

Certamente, muitos já ouviram falar sobre o Caminho de Santiago, alguns demonstram o desejo de fazê-lo, e outros até já o realizaram. Aqui me proponho a falar um pouco sobre sua origem e história, além das minhas percepções sobre a peregrinação, tendo sempre como pano de fundo o retiro do Cursilho.

As origens

Compostela, junto com Jerusalém e Roma, é um dos principais lugares de peregrinação cristã. A sua importância no contexto da história do cristianismo decorre da tradição de que o Apóstolo São Tiago (44 d.C.) foi sepultado no local onde hoje se ergue a Catedral Compostelana. Esta convicção faz convergir para Santiago de Compostela milhares de peregrinos anualmente desde a Idade Média.

Mapa Península Ibérica
Mapa Península Ibérica

No princípio do século IX, num bosque onde hoje se ergue a Catedral de Santiago de Compostela, um monumento sepulcral foi descoberto por um eremita Pelayo. Ele julgou estar perante os restos mortais do Apóstolo Santiago. O bispo Teodomiro, da então Diocese de Iria Flavia, foi avisado e dirigiu-se ao local e encontrou as ruínas de uma antiga igreja e de um túmulo, não tendo dúvidas em declarar que aquele era o sepulcro do Apóstolo São Tiago.

O bispo Teodomiro apressou-se a comunicar esse descobrimento entre os reinos cristãos da Europa de então. Posteriormente, construiu-se a primeira igreja, consagrada a São Tiago no ano 834. Deste modo, confirmava-se o lugar como um espaço sagrado que rapidamente se converteria num espaço singular no contexto da Europa cristã.

A partir da Bíblia, sabemos que Tiago era natural da Galileia e irmão de João. Tal como seu pai, Zebedeu, era pescador (Mc 1, 16-20). É conhecido como São Tiago Maior para distingui-lo de outras figuras do Novo Testamento com o mesmo nome. Juntamente com Pedro e João, Tiago fazia parte do primeiro grupo de discípulos chamados por Jesus. Este grupo acompanhou o Mestre em momentos especiais do seu ministério e da sua vida como a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 22-24.35-42), a transfiguração (Mc 9, 2-8), a agonia no Getsémani (Mc 14, 32-42). E segundo o livro Atos dos Apóstolos, Tiago foi o primeiro dos Apóstolos a morrer mártir, tendo sido decapitado em Jerusalém, no ano 44, por ordem do rei Herodes Agripa I (At 12, 2).

A tradição também diz que Tiago anunciou o Evangelho na Península Ibérica. Após o seu martírio em Jerusalém, dois dos seus discípulos trasladaram o seu corpo numa barca para sepultá-lo na região onde evangelizara. Atravessaram o mar Mediterrâneo, passaram pelo oceano Atlântico e aportaram na costa da Galícia, sepultando o seu corpo.

Tumba do Apóstolo Tiago
Tumba do Apóstolo Tiago

O rei das Astúrias, Afonso II, acompanhado da sua corte, dirigiu-se em peregrinação a Compostela (Caminho Primitivo), colocando-se a si próprio e ao seu pequeno reino sob a proteção do apóstolo. Assim, logo o bispo e o rei cuidaram de informar o papa acerca de tão precioso achado. A divulgação da notícia por toda a Europa transformou Compostela num local privilegiado de peregrinação. O fato de possuir um tesouro invulgar, concretamente o túmulo de um dos doze apóstolos, conferia-lhe um estatuto especial no conjunto das outras igrejas da Cristandade, só comparável a Roma e Jerusalém.

Os caminhos

Não tardou muito a que os peregrinos de toda a Europa começassem a acorrer a Compostela para venerarem as suas relíquias, tornando-se num ponto de referência na espiritualidade medieval. A posterior instituição do Ano Santo Compostelano (quando 25 de julho, data da morte de Tiago cai num domingo), no século XII, contribuiu decididamente para o incremento da peregrinação e o prestígio do local. À sua beira construíram-se igrejas, conventos, hospitais, albergues para acolher os peregrinos, prestar-lhes assistência religiosa e cuidar dos doentes.

Caminhos de Santiago de Compostela
Caminhos de Santiago de Compostela

 

Esses caminhos nasceram como caminhos de fé, mas tornaram-se também vias que facilitaram o intercâmbio cultural. Por eles passaram, ao longo dos séculos, incontáveis peregrinos de todos os países da Europa e do resto do mundo, contribuindo substancialmente para o intercâmbio de pessoas, ideias e bens.

A peregrinação

A peregrinação ocupa um lugar de destaque no universo doutrinal e devocional do cristianismo, recordando-nos que, do nascimento até à morte, o homem é um peregrino sobre a terra. A este propósito, João Paulo II afirma que a peregrinação “reproduz a condição do homem, que gosta de descrever a sua própria existência como um caminho. Do nascimento até à morte, cada um vive na condição peculiar do homo viator” (homem caminhante).

Caminho Primitivo de Santiago de Compostela
Caminho Primitivo de Santiago de Compostela

 

Como sabemos, a vida humana é, na perspectiva cristã, uma caminhada, uma peregrinação ao encontro de Deus. Na Bíblia, temos vários textos que fala sobre isso: vida na terra é tempo da peregrinação (1Pe 1,17); o cristianismo é o Caminho (At 9, 2; 19,9; 22,4); uma caminhada espiritual, cuja meta final é a Jerusalém celeste (Ap 21, 1-4); reconhecimento que o homem não tem morada permanente (2Cor 5,1-6). Assim, na caminhada do homem, Deus o acompanha e sustenta com a sua graça a caminho da vida eterna.

Percepções do Caminho de Santiago

Quando realizamos a caminhada, surge uma série de percepções que são despertadas no peregrino. Elenco algumas, sendo a primeira o crescimento na confiança tão necessária para enfrentar o temor face às contingências da peregrinação. Fazer o caminho é também um exercício de autoconfiança, descobrindo que ninguém nos pode substituir no caminhar. Daí nasce a consciência de que cada pessoa tem um contributo único a dar à sociedade em que vive.

Outra percepção é o diálogo na aceitação do outro e na articulação das diferenças, pois cruza-se com pessoas provenientes de todos os continentes. E cada peregrino traz consigo as suas experiências existenciais, afetivas e religiosas, com suas ideias e hábitos culturais. É um espaço onde o diálogo com o outro é possível num plano de igualdade porque todos os peregrinos estão, por assim dizer, “fora de casa” não só geograficamente falando, mas também simbólica e culturalmente. O diálogo conduz ao conhecimento mútuo e este é um passo importante no combate ao medo face ao desconhecido. É sair-se de si, indo ao encontro do outro, quebrando os medos que separam na busca de um novo modelo de unidade na diversidade. Proporciona uma comunidade aberta às outras e envolvida no processo de humanização.

Wladimir, Angelillo e Rafael, os 3 Cursilhistas Peregrinos, 2015
Wladimir, Angelillo e Rafael, os 3 Cursilhistas Peregrinos, 2015

Na peregrinação, a realização de pequenas tarefas, como preparar uma refeição, lavar a louça, deixar limpo o local onde o grupo pernoitou pode ser uma ocasião propícia para descobrir a beleza do serviço. É natural que quem peregrina esteja sujeito a fazer bolhas nos pés, a ter dores musculares, a ser encharcado pela chuva, talvez dormir no chão, a passar frio ou sede. Mas esses acidentes de percurso podem gerar autênticos gestos de serviço fraterno e ajudar a tomar consciência do valor e da importância que a dimensão da gratuidade têm na vida das pessoas.

Pelos Caminhos de Santiago há uma relação muito próxima com a natureza. O caminho a pé cria uma espécie de cumplicidade com a terra que se pisa, a água que sacia a sede, o vento que ameniza as tardes quentes e o calor do sol que enxuga as roupas molhadas ou aquece durante o frio. A peregrinação possibilita o caminhar passo a passo, observando a paisagem e as pessoas, deixando-se envolver pelos cheiros da natureza e pelos seus sons. Mas também onde se vê os contrastes: paisagens belas de cortar a respiração e zonas poluídas; ora puro silêncio, ora ruído infernal. São momentos para uma reflexão crítica sobre as sugestões e orientações que o mundo promove na defesa do meio ambiente e da qualidade de vida do ser humano.

Quanto os motivos da peregrinação, é preciso dizer que eles são diversos. Há os peregrinos crentes que fazem o caminho a partir das suas convicções cristãs e há peregrinos não crentes, não praticantes, afastados da Igreja.

Há peregrino que busca, mesmo não crente, um horizonte que dê sentido à sua vida e história, uma busca espiritual, consciente ou não. O que faz o caminho por razões culturais, a fim de contatar com as numerosas obras de arte, fruto do trabalho artístico de vários séculos. É possível encontrar até algum peregrino que não sabe muito bem porque é que iniciou a caminhada, associando o caminho a uma mística ou a um chamamento mais ou menos difuso.

Há os que partem por espírito de aventura, com o objetivo de testar os próprios limites físicos e psicológicos. Todavia, quaisquer que sejam os motivos pelo quais fazem o caminho, todos os peregrinos poderão chegar a Compostela mais livres e mais ricos. Livres, se aproveitarem os dias da peregrinação para experimentar uma forma de vida mais criteriosa, mais desprendida e mais simples. Mais ricos, se conseguirem descobrir o que é verdadeiramente essencial nas suas vidas a nível espiritual, afetivo, familiar e profissional, e forem capazes de prescindir das muitas coisas desnecessárias que tornam a mochila pesada e os dias cinzentos.

O Caminho proporciona o desafio do desprendimento. Na encíclica Centesimus Annus, S. J. Paulo II já alertava para os perigos do consumismo, pois o homem pode “criar hábitos de consumo e estilos de vida objetivamente ilícitos e frequentemente prejudiciais à sua saúde física e espiritual”. Não é mal desejar uma vida melhor, mas é errado o estilo de vida que se presume ser melhor, quando é orientado para o “ter” e não para o “ser”, para um consumo do prazer como um fim em si próprio. Enfim, é um aprendizado que proporciona adotar um estilo de vida no qual se busca o verdadeiro, o belo, o bom e a comunhão.

Oração da Manhã do Peregrino
Oração da Manhã do Peregrino

É indiscutível que os caminhos de Santiago nasceram cristãos, e que os peregrinos que os percorriam nasciam e cresciam num ambiente profundamente cristão. É certo que, atualmente, tal atitude não é tão verdadeira como outrora. Mas o verdadeiro peregrino cristão de hoje vai a Santiago de Compostela, em primeiro lugar, numa atitude de peregrino. Considera a espiritualidade como o empenho assumido e consciente para integrar a própria vida no horizonte da transcendência, aquilo que cada qual percebe como o valor último da sua existência. Em consequência, a espiritualidade traduz-se num compromisso que liberta a pessoa para se comprometer, responder, criar e ajudar a transformar o mundo.

E no final da peregrinação, ao cruzar o majestoso Pórtico da Glória da Catedral de Santiago de Compostela, os peregrinos, orientando a sua vida à luz das escrituras sagradas, regressam aos seus lugares de origem para ali serem testemunhas vivas de Jesus Cristo.

 

Vídeo Botafumeiro na Catedral de Santiago

 

O Caminho de Santiago e o Cursilho

Apesar das dificuldades, provações e dores, o Caminho de Santiago proporciona aos peregrinos uma descoberta de um belo caminho interior: o autoconhecimento; das renúncias do que é secundário e do essencial para escolher os melhores caminhos para a felicidade; do resgate ao prazer de viver; da renovação e redirecionamento da mentalidade, apontando e clareando os valores fundamentais que definem o verdadeiro sentido da vida. Voltamos de lá melhores homens e mulheres. Mais conscientes para enfrentar os caminhos da vida profissional, comunitária, familiar e pessoal neste mundo tão cheio de contradições, incertezas e desafios.

O Cursilho com um modus operanti diferente, também opera uma transformação no homem: uma vida espiritual centrada em Jesus Cristo, alimentada pela Graça que efetiva experiências de Deus, num processo de conversão integral e progressiva, que incultura o Evangelho nos ambientes. Uma verdadeira proposta de ação na esperança em poder transformar a sociedade através dos valores cristãos.

Apesar de um ou do outro terem suas peculiaridades, como a duração do retiro (longas semanas de peregrinação ou somente três dias), as percepções e experiências vivenciadas pelo peregrino ao realizar o Caminho ou o cursilhista que realiza seu retiro são semelhantes: tornamo-nos mais felizes, capacitados para melhor discernir e levar com alegria a Boa Notícia aos irmãos.

Diante de tudo isso, fica fácil entender por que permanece no peregrino uma inquietude, um constante fascínio e desejo de realizar uma nova peregrinação, ou um novo retiro de Cursilho. Essas são experiências admiráveis, surpreendente e transcendentes.

Decolores! Viva a Vida!

 

 

Rafael Cechella Isaia - YouTube

Rafael Cechella Isaia |Cursilhista de Santa Maria, RS | Administrador e Teólogo

 

 

Arquivos de mídia